18 de março de 2009

Clodovil, um arquétipo nacional

De volta aos anos 80. Um pai de família na intenção de fazer rir suas visitas, volta-se para o filho (com menos de 10 anos) e pergunta: "Meu filho, o que o Clodovil é?". A criança diz na bucha: "bicha". Pai e filho provocam gargalhadas nas visitas.

Esta cena eu presenciei na minha própria infância. Ela ocorreu há muito tempo na casa de meus tios. A criança era um primo meu, hoje um homem heterossexual casado. Quando li pela intenet ainda ontem sobre a morte cerebral do estilista e deputado federal Clodovil Hernandez, não pude deixar de pensar nela. A cena, praticamente esquecida, voltou inesperadamente à minha memória, e me assombrou como um velho fantasma.

Me ocorreu subitamente que Clodovil talvez tenha sido a primeira "bicha" oficial em minha infância, aquela figura afetada do qual os pais dos meninos deste país adoram falar mal, fazendo graçolas, contando piadas, simulando desmunhecação, discriminando pela afeminação. Nesse sentido, a figura simbólica de Clodovil ressurge com força. Como uma espécie de arquétipo: ele encarnava a bichona, a bicha-louca, a que era motivo de risos e de repugnância para homens e meninos, futuros machões em estágio larvar. Ele era como a Geni, a patética personagem da música "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque, a que era "boa de apanhar" e "boa de cuspir", a "maldita Geni".

Bicha? Praticamente um sinônimo de Clodovil naqueles tempos em que meninos eram educados para serem machinhos através de um aperfeiçoamento sistemático e gradativo de preconceitos paternos e maternos.

Por outro lado bastava acompanhar Clodovil em seu quadro de moda no programa "TV Mulher", e testemunhar um apresentador com uma língua sempre afiada, para o menino perceber que aquela "bicha" era não apenas um ser ofendido, mas sobretudo, um ser ofensivo. Que atacava ferinamente. Venenosamente. Talvez aquela verve toda fora aguçada ao ponto máximo por instinto de sobrevivência.

Clodovil tripudiava, com esnobismo. Tri-pu-di-a-va. Dizia coisas que feriam. E conquistava desafetos em qualquer meio que adentrasse, fosse a TV, a moda ou a política. Vejamos suas frases agressivas sobre as mulheres, as declarações de que elas andavam muito "ordinárias" e "vulgares", "trabalhando deitadas e descansando em pé": surgem numa época em que os noticiários foram todos varridos pelas duvidosas imagens das mulheres-frutas.

Suas contradições também ficaram famosas. Mesmo considerado um símbolo nacional da "bicha", o estilista jamais assumiria a bandeira gay. Se dizia contra o casamento dos LGBT. Irônico, gostava de dizer frases de efeito contra os outros, mas detestava virar piada. Talvez porque tenha sido alvo delas durante uma vida inteira. Julgado pelo TSE, ameaçado de perder o mandato, obteve uma vitória pouco antes do AVC que o matou.

Uma vez Renato Russo declarou que em nosso país só existiam três bichas assumidas: ele mesmo, Clóvis Bornay e Clodovil. Entendo o que ele queria dizer, especialmente quando leio entrevistas com Bernardo Carvalho ou Miguel Falabella. Os outros "moitam" ou simplesmente evitam rótulos. Com sua morte, o Brasil perdeu sua última "bicha" oficial. Alguém que mesmo sendo alvo de milhões de piadas e xingamentos, manteve a dignidade e jamais calçou as sandálias da "humilhação" que tantos tentam impor aos homossexuais no Brasil.

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